‘Mocambo, caminho longo’ [2015]

O bairro do Mocambo ia das portas da muralha Fernandina, hoje o Chiado,  passando pela Estrela, Alcântara e Belém, mas não ficava por aqui e estendia-se até Barcarena, Algés e Oeiras. Um território de línguas proibidas

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O Mocambo e as suas gentes


Autores: Isabel Castro Henriques e Pedro Pereira Leite*


Criado por alvará régio de 1593, seguido de outro de 1605, o bairro do Mocambo era “ o segundo dos seis bairros em que Lisboa estava organizada, compreendendo então as freguesias de Santos-o-Velho, Santa Catarina, S. Paulo, N. Sª. do Loreto e Chagas”. Mais tarde, outro alvará régio datado de 25 de Março de 1742 assinala os “doze bairros” que organizam a cidade de Lisboa, sendo o décimo segundo designado “Bairro do Mocambo “e compreendendo as “freguezias de Santos e de Nossa Senhora da Ajuda, com os logares de Alcântara e de Belém” e os “julgados de Barcarena, Algés e Oeiras”.  


Trata-se de uma designação singular e inédita de um bairro – cremos que único na Europa – que recorre a um termo de raiz africana para o assinalar. Mocambo, que em umbundo significa ´pequena aldeia, lugar de refúgio’, como aliás o termo sinónimo quilombo, na língua quimbundo, pertencem à esfera das línguas de Angola.


Se o substantivo assenta na ideia da existência dos negros fugidos, que se instalam no mato, isto é, em território não controlado pelos proprietários, construindo aí as suas habitações e adquirindo a liberdade, o Mocambo de Lisboa que, segundo Raphael Bluteau (1716), era “antigamente […] sítio de uma quantidade de casinhas de pescadores e negros”, como aquelas a que “no Brasil chamam …aldeias de uns negros repartidas em choupanas, [chamadas] mocambos”, integrava oficialmente a cidade, a designação pondo em evidência o aumento significativo da população africana na capital e a necessidade de criar um espaço para a sua instalação.  


Situado nos arrabaldes de Lisboa, o bairro do Mocambo deve ser considerado como uma organização simultaneamente criada pelos africanos, sobretudo livres ou forros, e pelas autoridades portuguesas – ou castelhanas – que a aprovaram, pois permitia ela descongestionar a cidade. As populações africanas procuraram aí encontrar uma habitação autónoma - sem que conheçamos com rigor a propriedade e a arquitectura do espaço -, que podia acolher escravos, à revelia das normas legais,  permitindo-lhes uma vivência marcada por algumas práticas culturais africanas, em particular os rituais, religiosos ou sociais (nascimento, casamento, morte, parentesco) que podiam preservar e respeitar, longe do olhar crítico e redutor dos portugueses.


O estudo das muitas fontes escritas portuguesas ou estrangeiras, de algumas obras plásticas ou de outros documentos iconográficos mostra o vai-e-vem desses homens e mulheres africanos, escravos e livres, que trabalhavam na esfera doméstica das famílias portuguesas ou na cidade, desempenhando as mais diversas tarefas urbanas. Sublinhem-se as tarefas essenciais à higiene e manutenção dos espaços públicos - varredores, caiadores, calhandreiras, distribuidoras de água -, mas também o aprovisionamento de bens aos lisboetas, tarefa sobretudo feminina: o comércio de rua e de porta fornecia bens alimentares, produtos agrícolas, bens de consumo como o carvão e o pescado, vendido por regateiras, brancas, pretas, mulatas, que corriam Lisboa de ponta a ponta. Às actividades masculinas ligadas ao mar, da marinharia à construção naval e à pesca devem acrescentar-se os muitos outros ofícios que eram desempenhados pelos africanos, como os fornos de ferraria, instalados na cidade e arredores, as olarias situadas na periferia do bairro do Mocambo, mas também os trabalhos do ferro, do couro, da madeira, da tecelagem e mil outras tarefas que a vida urbana exigia.


A partir do século XVII, o Mocambo assistiu à instalação progressiva de população portuguesa ligada às actividades do mar. Pouco a pouco, os africanos foram abandonando esse espaço urbano, sobretudo após as medidas pombalinas que decretaram a proibição da importação de escravos (1761) e a abolição da escravatura em Portugal (1773). O desenvolvimento urbano do Mocambo segue-se ao terramoto de 1755, como resultado da destruição das zonas baixas da cidade: os africanos que permaneceram forneciam a mão-de-obra barata para o trabalho fabril decorrente da multiplicação de fábricas na periferia norte e noroeste da cidade, até desaparecerem e com eles a designação do bairro.


Sublinhe-se, no entanto, que o bairro deve ter mantido alguma importância na memória dos africanos, pelo menos daqueles que se reconheciam como oriundos de Angola e do Congo, pois que, por volta de 1880, “a casa [onde] se alojou a Rainha “do Congo, D. Amália I, com a sua comitiva, quando se deslocou a Portugal para conhecer e prestar vassalagem ao seu senhor e soberano, o Rei de Portugal”, situava-se precisamente na Travessa do Outeiro, à Rua da Bela Vista à Lapa….”, onde decorriam festas africanas anunciadas e rotuladas de «assombrosas»  nos periódicos lisboetas. [ O António Maria, 1882 HM- CML]



De bairro a travessa, de Mocambo a Madragoa


Se referências seiscentistas ao estatuto social do bairro permitem avaliar esse processo de mudança, dando conta da sua desvalorização  - passando “de um dos melhores lugares dos subúrbios de Lisboa” a lugar  referido pela sua “ sujidade” e pelo aparecimento de ” epidemias”, em meados de Oitocentos ( Júlio Castilho) -, a cartografia lisboeta mostra a evolução do bairro do Mocambo, a sua redução a travessa e a sua transformação  num bairro popular da Lisboa actual , que guarda a ligação ao mar nas memórias e nas práticas festivas.  


A situação social do Bairro modificar-se-ia de novo em meados do século XIX, a alteração das designações toponímicas sendo um reflexo significativo dessa transformação. Os documentos cartográficos de que dispomos dão conta da desaparição do bairro e da existência de uma “Travessa do Mocambo”, dando lugar – provavelmente na segunda metade do século XIX – à actual Rua das Trinas, local do velho convento seiscentista “das Trinas ou de Nossa Senhora da Soledade do Mocambo”. Nesse período já o bairro seria a Madragoa, designação cuja história é ambígua: derivada de “Madre de Goa “, designação do Convento local das Madres de Goa, ou  de “ Mandragam”, nome de uma aristocrata madeirense que ali teria casa.


Registe-se o facto de, entre 1911 e 1924, segundo Norberto de Araújo, esta “«Rua  das Trinas: Mocambo velho» ter sido denominada Rua Sara de Matos, até 1937”, data em que “se repôs na artéria a designação original”, Rua das Trinas, que assinala a história e a memória religiosa do lugar, mantendo no esquecimento a designação africana de um passado secular e a natureza inédita do bairro do Mocambo, “ um dos bairros mais frequentados e populosos da Capital” (Júlio Castilho, 1893).  



* Lisboa cidade Africana, Percursos de Lugares de Memória, Edição Marca d’ Água - Publicações e Projectos, 1ª edição, Junho  2013, Lisboa e Ilha de Moçambique