A complementaridade das imagens e das palavras reside também no facto de elas se alimentarem umas das outras. Não existe qualquer necessidade de uma co-presença da imagem e do texto para que este fenómeno se verifique. As imagens engendram palavras que engendram imagens, num movimento sem fim.

As imagens alimentam imagens: encontramos assim filmes que contam histórias de quadros ou de fotografias. A própria publicidade está repleta de citações de outras imagens, de outras publicidades, de obras de arte, de imagens de televisão, de imagens científicas, etc. A televisão, por sua vez, representa outras imagens para alem das suas próprias, pinturas, imagens de síntese, fotografia: estas referências, estas citações, estes desvios permanentes levaram a pensar que a imagem mediática não remetia para qualquer real mas apenas para si própria, que ela constituiria um universo auto-referencial.

Mas existem também as palavras que nos provam até que ponto as imagens podem alimentar a imaginação. A imagens, as histórias de imagens ou de obras de arte são quase sempre um formidável detonador de ficções literárias que as utilizam e as encenam. Delírio e Sonhos na Gradiva de Jensen (Freud), A Vénus de Ille (Merimée) ou o Retrato de Dorian Gray (Óscar Wilde), para apenas citar alguns, são exemplos célebres de textos poderosos e cheios de “charme” e cuja intriga tem como ponto de partida um baixo-relevo, uma estátua, uma pintura — “imagens”. Recordemos que, até ao século XVII, a palavra “charme” (Cármen, em latim) teve o sentido de “fórmula mágica” ou “canto mágico”, provocando o enfeitiçamento, bruxaria, magnetismo ou ilusão...

A imagem fotográfica favorece este mecanismo e é frequente encontrarmos histórias de fotografias, tanto em filmes como em romances. Não se trata de um caso, mas sim do peso específico da imagem fotográfica.

A partir de um exemplo preciso, a análise das palavras inspiradas pela fotografia mostrar-nos-á o modo como a teoria nos permite compreender a razão pela qual a fotografia, mais do que qualquer outra imagem, pode engendrar o sonho e a ficção.

"A imagem, as palavras", Martine Joly


Projecto Hierofania (ἱερός)

São Jerónimo

Dürer escolheu um velho homem de 93 anos para modelo do São Jerónimo pintado em 1521. Nesse mesmo ano ofereceu esta obra singular ao secretário da feitoria portuguesa de Antuérpia, Rui Fernandes de Almada, que em 1549 a trouxe para Portugal.

Acompanhado dos tradicionais atributos – o Crucificado, a caveira, escrivaninha, livros, tinteiro e pena, o santo de barbas desenhadas a pincel apoia a cabeça na mão direita, aponta a caveira com a esquerda e os seus olhos olham os nossos olhos. Tais gestos aludem à vida humana e à redenção divina e determinam uma visão humanizada da fé, da resistência e da sabedoria de um mestre (séculos IV-V) da doutrina cristã.

Dürer serviu-se dos cânones seguidos pelos Mestres pintores mas consubstanciou na incisiva expressão deste olhar carregado de experiência, a novidade da representação.

Datados do próprio ano da pintura, que se manteve na posse da mesma família até o Estado português a adquirir em 1880, existem estudos prévios de que destacamos o Retrato de um velho de 93 anos, desenho da Galeria Albertina, em Viena.

São Jerónimo | Albrecht Dürer (Nuremberga, 1471-1528) | Monogramado e datado 1521 (canto inferior esquerdo)

Óleo sobre madeira de carvalho | A 59,5 x L 48,5 cm

Homenagem a Fernando Lemos [autoretrato]

"A luz é binária, só tem dois movimentos: acende e apaga"

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A creche

Às portas de Lisboa, o bairro da Cova da Moura, um pequeno quilombo na Europa do século XXI tenta resistir “silenciosamente” às politicas de modernidade e urbanização higiénica do município da Amadora, à violência da polícia de intervenção rápida e aos preconceitos da comunicação social.

“A creche”, símbolo da união destes cidadãos, é uma instalação provisória que se quer apagada, tal como a memória dos escravos que Lisboa quer esquecida e que ainda hoje é um tema intocável, ou a história do bairro do Mocambo, criado por alvará régio no século XVI e estranhamente extinto no século XIX.

A obra “A creche”, é uma reflexão apresentada em grande formato, tal como as grandes pinturas do século XVIII, revelada este ano a partir do quadro “Os Litores Trazendo a Brutus os Corpos de Seus Filhos” (1789) de Jacques-Louis David. Que representa a exaltação do patriotismo em detrimento de todos os outros valores, como a família ou o individualismo.

“Os Litores Trazendo a Brutus os Corpos de Seus Filhos” (1789) de Jacques-Louis David.

"A creche" (2016)