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Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, 19 de Junho de 2015

BOBA KANA MUTHU WZELA

Mocambo de Lisboa, território

de línguas proibidas


Muito obrigado por me darem a oportunidade de apresentar o projecto autoral “Século XVIII. Revelar a memória a partir do esquecimento”, e também para poder recordar os tristes e violentos acontecimentos que cinco jovens do Moinho da Juventude sofreram na esquadra do Corpo de Intervenção Rápida em Alfragide, no início deste ano.


Atrás de mim podem ver o maior quadro do século XX, “Guernica”, de Pablo Picasso, a mais famosa obra contra a guerra. Talvez não saibam, é que esta obra esteve na Exposição de Paris em 1937. Serviu para representar a República de Espanha,  e recordar a tarde de 26 de Abril desse mesmo ano, em que a cidade basca de Guernica foi devastada por bombardeiros alemães e forças da Legião Condor. Sobre Guernica Pablo Picasso afirmou: O touro não é o fascismo, mas a brutalidade e a escuridão... o cavalo representa o povo... o quadro é simbólico”. A esta obra, junto a ideia do constitucionalista angolano Prof. Dr. António Alberto Neto: “Os crimes contra a humanidade não prescrevem”, mas também não quero esquecer que não podemos ver, com os nossos olhos, o passado distante.


Ao contrário dos tempos que vivemos, que exigem rapidez e estão carregados de quantidades desmesuradas de imagens, o primeiro quadro deste projecto demorou três anos a construir. Representa o estadista D. Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, Secretário de Estado e quinto neto da rainha Ginga.


É um exercício técnico que reflecte à primeira vista, uma tentativa de aproximar a fotografia à pintura e ao desenho, em particular aos antigos pintores flamengos que ainda hoje são muito admirados pelas suas cores, bem como pelas suas composições inteligentes e brilhantes no uso da luz.


Mas é, principalmente, uma reflexão Surreal e Filosófica sobre a Vida, o Apocalipse, o Racismo entranhado no subconsciente, a História de que não temos consciência, a Ruína, a Máscara social e política, as Emoções, o Poder e o Estado, mas acima de tudo, é sobre a Memória. Como foi esquecida ou apagada...


O ponto de partida desta aventura foi um texto “O quinto neto da rainha Ginga” do historiador angolano Filipe Zau, publicado no jornal de Angola em 27 de Abril de 2010. Que nos relata a silenciosa presença dos negros neste território e a investigação que levou à referencia de um antepassado da família dos Carvalhos, avô do Marques de Pombal, que terá casado na Beira, com uma escrava de nome Mãe Marta.


Mas também a polémica criada com o quadro “o último interrogatório do Marquês de Pombal”, de Malhoa, o qual um jornalista do Diário de Notícias em 1891 considerou uma ofensa à dignidade de um povo, pela maneira como o tema fora abordado.


Neste meu projecto apresentado em espaços improváveis e na galeria da Casa Bocage em Setúbal, o processo fotográfico é cinematográfico, isto é, construído com figurantes, actores, cenários, adereços, caracterização, iluminação de estúdio e equipamentos fotográficos de grande formato, sendo o palco da captação das imagens os espaços históricos, revelando desta forma que ainda há vida no nosso Património.


No ano passado descobri o desaparecido e enorme bairro africano de Lisboa, o Mocambo.


Criado por alvará régio de 1593, o bairro do Mocambo ia das portas da muralha Fernandina, hoje o Chiado, passado pela Estrela, Alcântara e Belém”, mas não ficava por aqui e estendia-se até Barcarena, Algés e Oeiras”.


O nome Mocambo, que em umbundo significa “pequena aldeia, lugar de refúgio‟, ou “bocado” na língua quimbundo, línguas de Angola, era um bairro, habitado por homens livres e escravos, eventualmente um verdadeiro “Quilombo”, isto é, um território de homens que se autoproclamaram livres.


Em 1755, o terramoto destruiu a cidade dentro das muralhas, mas preservou intacto o bairro do Mocambo que ocupava a privilegiada encosta com vista para o Tejo. Por este facto a aristocracia, ocupará este território, começando pela Lapa.


Em 1880 há um último relato nos jornais das assombrosas festas africanas no bairro. Junto à Rua da Bela Vista à Lapa, onde estava alojada a rainha do Congo, D. Amélia I, com a sua comitiva.


Para quem não sabe, história significa “ver” (ver, logo, saber), contudo a história só é história na medida em que não consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta uma vez que o seu sentido se mantém confuso... A história é na verdade, o reino do inexacto.


Este meu projecto pretende sobretudo criar imagens que nos revelam a história de que não temos consciência, recorrendo àquilo que muitos reivindicaram e continuam a reivindicar, o direito à imaginação.


Por isso os quadros que estou a construir, ao contrário das ideias tímidas dos historiadores que falam de 15%  a 20% de população negra no século XVI, dão corpo às outras informações, como a do reverendo inglês John Trusler, ao recolher depoimentos de viajantes, em 1747, redigiu que era chocante para os estrangeiros ver a quantidade de negros na cidade de Lisboa. E ao virem para Portugal é-lhes permitido casar não apenas entre eles, mas também com gente de outra cor, originando uma profunda alteração na raça portuguesa,  de tal forma que ser um “Blanco”, isto é, um branco de verdade, tornou-se título honorífico”. É esta visão de Lisboa que este projecto sobre o Mocambo quer desenterrar do esquecimento.


No final do ano passado, comecei a dar atenção às características do bairro da Cova da Moura, na Buraca, às portas de Lisboa: era uma pequenina réplica do histórico bairro africano do Mocambo de Lisboa.


Uma estranha coincidência, os acontecimentos do 5 de Fevereiro deste ano, narrados na imprensa e nas televisões como um ataque de um grupo de jovens à esquadra do Corpo de Intervenção Rápida de Alfragide, logo após as notícias do Charlie Hebdoo em Paris, fizeram-me desconfiar da veracidade desta notícia.


Decidi ir à Associação Cultural Moinho da Juventude apresentar este projecto autoral e fazer o convite de em conjunto representarmos os nossos antepassados do Mocambo.

Como seriam as festas na Lisboa deste tempo?

Será possível o nosso imaginário representar os navios e o cortejo na festa do Kola San Jon, nesta época?


Convidei também os jovens do 5 de Fevereiro para fazerem uma representação do que lhes aconteceu na esquadra, enquadrando a situação num quadro do século XVIII onde a cena apresentada fosse uma reflexão sobre a amnésia do Estado Nação, quando se contaram mais de 7 milhões de escravos arrancados dos territórios ultramarinos, em que 25% morreram nas travessias do Atlântico.


Este quadro “5 de Fevereiro” revelado hoje, é o resultado deste encontro de pessoas e ideias.


Tal como o quadro Guernica, também aqui as personagens são simbólicas. É uma representação do que aconteceu a 5 de Fevereiro de 2015. Depois do Rui ter sido detido violentamente dentro das instalações do Moinho da Juventude. O Miguel, o Paulo, o Flávio e o Celso, que estão aqui comigo, dirigiram-se à esquadra para saberem notícias do Rui, quando foram recebidos no pátio, com um tiro à queima-roupa, o Celso incrédulo levantou os braços, levou com um 2º tiro. Depois de algemados ainda na rua junto à entrada da esquadra, foram brutalmente espancados. Dentro do autocarro que passava as pessoas faziam sinais para pararem as agressões...


...mas as agressões continuaram, acompanhadas de frases como: “Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos todos desta terra. É preciso uma legislação para fazer a vossa deportação. “


Mas o que podemos fazer, quando alguém é vítima de um crime racista? Um crime racista, dentro de uma esquadra da polícia de segurança pública. E pública, recordo, representa-nos a todos, isto é a República.


O que podemos fazer para que este jovens voltem a acreditar?

...na PSP, na República, na Democracia, na Liberdade, no Respeito, na Cidadania?


O que podemos fazer para que o Paulo, já anteriormente vítima de um enfarte que o deixou incapacitado do lado direito, vá ao Centro de Formação sem ter medo de passar à frente da esquadra?


O que podemos fazer para que os representantes da política...


...vizinhos do bairro, como a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal, estejam aqui, ao lado dos seus cidadãos, mesmo que estes sejam uma minoria diferente. E como podemos mudar o seu desejo de modernidade? A modernidade que fez desaparecer o bairro do Mocambo em Lisboa.


Mas neste quadro “5 de Fevereiro” há uma outra coincidência.


Para quem nasceu em Angola, como é o meu caso, representa o dia seguinte ao 4 de Fevereiro de 1961, a data do ataque da UPA às fazendas do Norte de Angola e à Cadeia e Correios em Luanda. O dia em que em pânico, os portugueses receberam armas para fazerem a autodefesa.

Nos funerais, com as pessoas armadas à pressa, quando algum rapazinho espreitava para ver o que se passava, era logo identificado como “turra”, terrorista, e em fúria massacrado ou liquidado.


Por tudo isto aqui fica uma última questão: Pode a Arte mudar o mundo?


Queria dirigir um agradecimento ao Celso, Flávio, Miguel, Paulo, Rui pela sua coragem e oferecer-lhes a minha amizade.


Na exposição a realizar em Setembro o quadro “5 de Fevereiro” vai ser acompanhado de um curto vídeo documental realizado pelo Celso Lopes e um texto original sobre a silenciosa presença dos negros nas terras lusitanas, uma reflexão do Flávio Almada, conhecido no meio artístico por LBC.


Queria também agradecer à Associação Cultural Moinho da Juventude e ao Grupo Kola San Jon, e em particular a dedicação e amizade da Godelieve Meersschaert, para nós a Lieve.


Estão também aqui presentes, o José Augusto, o meu braço direito nas questões técnicas de fotografia, a Raquel Coelho da Sons & Ecos responsável pelos belos Figurinos, o actor Jorge Silva que representou o caduco poder branco, o Bruno Ferro Gonçalves director da Casa Bocage / Arquivo Fotográfico Américo Ribeiro em Setúbal, local onde estará esta exposição de 15 de Setembro a 5 de Novembro de 2015, que convido a visitarem.


“BOBA KANA MUTHU WZELA.

2ª série do projecto “Século XVIII. Revelar a memória a partir do esquecimento”.

Um retrato do bairro do Mocambo na Lisboa do século XVIII, um território de línguas proibidas”

Muito obrigado pela vossa atenção.




http://jricardo.eu/projectos/secxviii/mucambo/5-de-fevereiro/index.html

3 de Julho de 2015, DN